Um dia a gaivota partiu, resoluta, não olhou para trás, nada disse, simplesmente partiu rasgando o azul de novos céus. Quis-se forte, vincou o olhar decidido mas traiu-a uma lágrima esquiva de saudades pelo que abandonava, pelo seu rochedo, uma escarpa negra indistinta como tantas outras ao longo da costa mas que a vira nascer, que a abrigara da fúria dos ventos e amainara a raiva das ondas em beijos repentinos de espuma e protegera de tantos maus humores de dias mal acordados, saudades por aquele mesmo mar que em dias pacíficos fora o espaço preenchido vezes sem conta em voos sem tempo, perdida em carícias e brincadeiras com as ondas, suas irmãs desde o dia em que nascera por um pacto de liberdade. Fora talvez por causa desse voto de liberdade, crescido com ela, que sempre fora colocada de lado e por vezes até mal vista pelas outras gaivotas ciosas dos códigos de conduta aceites, do cumprimento de comportamentos sociais, prisioneiras do cinzento a que chamavam vida e que a horrorizava tanto por não ter cores nem poesia, essa vidinha que tanto lhe quiseram impor e sempre renegara. Se essa gaivota pudesse ler iria por certo adorar "Fernão Capelo Gaivota" de Richard Bach mas o facto é que era uma gaivota e como tal nunca aprendera a ler e também nunca lhe haviam atribuído graça alguma mas para a história podemos chamá-la simplesmente G, de gaivota.
G sempre fora rebelde e não sem razão a mãe a avisara dos problemas em que ela incorria por querer ser diferente porque a diferença incomoda e como tal seria melhor comportar-se como as outras gaivotas, regular-se numa vidinha ordinária e assim deixaria de ser apontada, rotulada. G ouviu mas não acatou, nunca poderia, não seria ela se mudasse contra a própria natureza que lhe corria no sangue apenas para ser bem vista. As consequências acabaram por ser uma vida de intolerância e de segregação, à mistura do sofrer inerente; só fora feliz quando solitária pudera voar, livre do bando. Então G rezava à Grande Gaivota que aqueles momentos se prolongassem indefinidamente mas acabava sempre por regressar vítima da exaustão ou de alguma intempérie que entretanto se levantara ou ainda castigada pela noite que a despertava abruptamente daquele sonho. Com o passar dos anos e das desilusões acumuladas G acabara por deixar de crer na Grande Gaivota e naquele mundo em que habitava e passara a acreditar apenas em si.
Um dia, por fim, G achou que era chegada a hora de partir, largar tudo e enfrentar um novo mundo e novos mares, mesmo que plena de dúvidas e de incertezas e de até em risco de não conseguir sobreviver à viagem ou de encontrar novo poiso. Mesmo assim G, teimosa, lançara-se, resoluta, sem retorno. Sem olhar para trás. Sem uma palavra. Partira. Aos poucos foi-se afastando, mingando o vulto, um traço diluído no azul imenso da tarde e numa crença de viver e num sonho chamado liberdade.