< Miradouro da alma: julho 2006

14 julho 2006



Ciao! Au revoir!





Todos os princípios têm um fim, mais cedo ou mais tarde, e este blog, acho eu, atingiu o seu objectivo que era o de um certo apaziguamento interior de que precisava: preenchi-o com poesia essencialmente de palavras mas também de imagens (que a fotografia é para mim precisamente uma composição poética); gostava de poder ter escrito mais e de conseguir escrever mais coisas da minha autoria mas isso nem sempre depende de nós próprios mais até de outros factores diversos, isto apesar de por vezes as ideias aparecerem em catadupa mas, no meu caso, ou começo logo a escrever ou então acaba por se perder tudo e depois deparamo-nos com uma profusão de papelinhos com ideias mas sem texto algum (tenho-os guardados religiosamente não vá surgir a inspiração de novo). Se consegui atingir algum nível de apaziguamento interior isso não equivale isto à paz total, a qual acho nunca conseguirei atingir mas que de verdade nem acho muito saudável pois a agitação é própria da mudança e da evolução e inimiga da monotonia logo boa se consumida em doses não excessivas.
Este é um fim mas não um fim conclusivo como de não retorno, é só um fim com muitos outros, um até já em que qualquer dia volto, possivelmente não tão cedo até porque profissionalmente tenho andado ultimamente com o tempo muito preenchido: vou mas volto e aproveito a onda igualmente para umas merecidas férias. Fica a caixa do correio para quem quiser entrar em contacto se lhe apetecer.
Ciao! Au revoir!



O mar, e por cima de nós os ramos
do crepúsculo, e os remos do sol que
se afundam no mar do horizonte.

O Movimento do Mundo
Nuno Júdice




13 julho 2006






12 julho 2006





O tempo não podia correr numa ilha sem lugar e sem sombras.
mas abolido o tempo, a história deixava de existir.
ao princípio era a ninfa e o silêncio da máquina do mundo.
era o silêncio no mais puro momento da sua glória inteligível.

Concerto Campestre
Vasco Graça Moura


11 julho 2006




Começo onde a memória dói.
Coisas antigas do susto de viver
terrores dos rostos dos outros
nem sei. Digo isto. Um espírito de meditação
nasceu da loucura, nunca soube de
tais coisas foram feitos os meus dias
de puros sons quebrados por sons puros. (...)

Joaquim Manuel Magalhães


10 julho 2006



A dor de todas as ruas vazias



os poemas adormeceram no desassossego da idade. fulguram na pertubação de um tempo cada dia mais curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas...e nada escrevo.
o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida - e a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar.

a dor de todas as ruas vazias.


Al-Berto
Horto de Incêndio



07 julho 2006



O amor não existe!


O amor não existe!
se quiseres chama-lhe tudo
atracção, desejo, paixão
Tudo! amor, isso não!
crias imagens
romances, ficções
será talvez um conceito
realidade é que não,
não te iludas, não caias
o amor é para os fracos
e os vendidos à ilusão

Sei do que falo
acredita-me na experiência
que vendido, iludido,
me acreditei um dia amado
É falso tudo!
até as palavras
devoradas em dias gastos
e horas de esperança,
e renego até mesmo as cinzas
em repouso na pedra tumular
sob a qual perecem sonhos
e gestos secretos
votos e fotografias amaralecidas ao tempo
Acredito mesmo que até eu menti:
como pude alguma vez amar?
será possível algum dia tê-lo dito?
se o amor é ficção
não existe
tu não existes
eu não existo
nada é o que somos
almas errantes
num mundo vago
de corações vazios
esbulhados em quatro letras
tantas como até o ódio tem
mas tão ocas
quanto quatro letras podem ser

Um dia acreditei
hoje já não:
o amor não existe!
e eu também não


05 julho 2006



Ficção

Incensam-se perfumes
e aromas e brisas,
sobre os corpos suados
sei do calor das velas
porque o sinto
expulso em chamas
sopradas em sussurros ao ouvido
sopradas nos gestos,
sopradas nas gotas
em que se desenham traços
e se contornam formas,


e nos lençóis alvos
à contraluz
as silhuetas da volúpia
os corpos enredados
no mar revolto
não estão lá
ou talvez estejam
já não sei


perde o medo
perde-o!
na carne pecadora
troca o destino
pela rota despudorada,
em que se abram os mares
queimados de suor

eis que dançam dois corpos
na loucura da espuma
encimam as ondas
os sonhos
e o leito da paixão.

Não te sei seres alguém
Sei que te creei
apenas em imaginação
mas perde o medo
perde-o!
talvez eu esteja enganado
e no medo perdido
tu existas
e se exaura a ficção.


04 julho 2006




"... a casa foi abandonada, permanece vazia. duma janela avista-se outra janela. o interior é húmido e escuro. onde uma porta enquadra outra porta não se pressentem mais sinais de vida. apenas flutuam aromas, presenças ténues de corpos. o olhar demora-se sobre as geometrias musgosas dos tectos. uma sombra desliza junto ao piano, o estuque esfarela-se, cai. ouve-se um rumor misterioso de poços, de insectos por dentro das paredes. o olhar aprende a ver na penumbra esverdeada das salas. apura-se o ouvido e o tacto quase consegue delinear a presença dos mortos. perco o medo, caminho de corredor em corredor sem acender uma única luz. consigo chegar à porta do quaro da infância, abro-a. o mar pressente-se a partir de um ângulo de treva, rente à cama. alguém fotografa alguém. o espelho acende o meu reflexo. não me reconheço nele. existe uma saída secreta que nunca utilizo, nem mesmo na fotografia. cresci com a casa. a infância desapareceu num recanto quase inacessível da memória. nada resta da travessia alegre dos corpos que nela viveram. nem mesmo se encontram sulcos de chuva nos soalhos ainda em bom estado de conservação. nem ossos de alguma ave que tenha servido de alimento, nem cinza ou pedaços de carvão, restos de gordura, nada. a luz continua a entrar pelas frestas das janelas mal fechadas. a noite atravessa a casa até aos alicerces de sal. a desolação insinua-se até à medula das madeiras. o olhar escolhe algumas imagens da casa, únicos sinais guardados na meticulosa memória de quem com ela viveu.

O Medo
Al Berto


03 julho 2006



Paris #15







"... a penumbra invade a casa, corrói tudo o que é sólido. Dantes, a solidão vergava-me, mas com o passar dos anos povoei-a com sorrisos, corpos, pequenos gestos que aderem à memória e me dizem que existo, que continuo vivo onde pressinto o coração a arder. é o ouro que se ganha quando se aprendeu a estar sozinho, tem-se tudo e não se possui nada. o que restava da memória foi partilhado ou foi abandonado para sempre. tudo o está constantemente presente e vibra sob a luminosidade imperceptível de ser eterno na fracção de segundo.
Se morresse agora não deixava nada, porque bebi toda a minha sede, esvaziei-me, devorei noites esse amargo que têm as coisas antes de nos pertencerem."

O medo
Al Berto