31 março 2006
pernoito no interior do corpo desarrumado
o medo invade o penumbroso corredor
descubro uma cintilação de água no estuque
uma cicatriz de cristais de bolor abre-se
porosa ao contacto dos dedos indica
que não haverá esquecimento ou brisa
para limpar o tempo imemorial da casa
deste simulado sono ficou-lhe o amargo iodo
as madeiras enceradas cobertas de poeira
ervas secas à chuva molhos de rosmaninho
junquilhos, bocas de lobo silenas, trevo
mas nenhuma fuga foi recomeçada
a infância permanece triste onde a abandonei
quase não vive
no entanto ouço-a respirar dentro de mim
agora tudo é diferente
recomeço a viver a partir do vazio
da treva dos dias em silêncio
por entre a pele e um feixe de magnificas veias
sinto o pássaro da velhice arrastando as asas
onde desenvolve o calmo voo lunar
enumero cuidadosamente os objectos, classifico-os
por tamanhos por texturas, por funções
quero deixar tudo arrumado quando a loucura vier
da extremidade aguçada do corpo alado
e o rosto for devassado por um estilhaço de asa
então a vida abater-se-á sobre a folha de papel
onde verso a verso
me ilumino e me desgasto
Al Berto
Poema do silêncio
Sim, foi por mim que gritei,
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.
Foi em meu nome que fiz
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que eu não vi serem necessárias e vós vedes.
Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
Que ergui mais alto o meu grito,
E pedi mais infinito!
Eu, o meu eu rico de vícios e grandezas,
Foi a razão das épi-trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Alevantei com ironia, sonho, e fumo...
O que eu buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febre de Mais, ânsias de Altura e Abismo
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.
E só por me ter vedado
Sair deste meu ser pequeno e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano,
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!
Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés abro o meu seio:
Procurei fugir de mim,
Mas eu bem sei que sou o meu único fim.
Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir,
Sofro por ter prazer em me acusar e em me exibir!
Senhor meu Deus em que não creio porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu - sou eu chegado à perfeição...)
Senhor! dá-me o poder de estar calado,
Imóvel, manietado, iluminado!
Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que eu levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!
Também sei bem que embora trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.
Mas o meu sonho megalómano é maior
Que a própria dor
De compreender como é supremamente egoísta
A minha máxima conquista!
Senhor! que nunca mais meus versos sôfregos e impuros
Me rasguem, e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...
Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida:
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome!
José Régio, Presença nº4
30 março 2006
Se perguntarem: das artes do mundo?
Das artes do mundo escolho a de ver cometas
despenharem-se
nas grandes massas de água: depois, as brasas pelos recantos,
charcos entre elas.
Quero na escuridão revolvida pelas luzes
ganhar baptismo, ofício.
Queimado nas orlas de fogo das poças.
O meu nome é esse.
E os dias atravessam as noites até aos outros dias, as noites
caem dentro dos dias - e eu estudo
astros desmoronados, mananciais, o segredo.
Herberto Helder
29 março 2006
28 março 2006
Minha aldeia é todo o mundo.
Todo o mundo me pertence.
Aqui me encontro e confundo
com gente de todo o mundo
que a todo o mundo pertence.
Bate o sol na minha aldeia
com várias inclinações.
Angulo novo, nova ideia;
outros graus, outras razões.
Que os homens da minha aldeia
são centenas de milhões.
Os homens da minha aldeia
divergem por natureza.
O mesmo sonho os separa,
a mesma fria certeza
os afasta e desampara,
rumorejante seara
onde se odeia em beleza.
Os homens da minha aldeia
formigam raivosamente
com os pés colados ao chão.
Nessa prisão permanente
cada qual é seu irmão.
Valência de fora e dentro
ligam tudo ao mesmo centro
numa inquebrável cadeia.
Longas raízes que imergem,
todos os homens convergem
no centro da minha aldeia.
António Gedeão
27 março 2006
A thing of beauty is a joy for ever:
Its loveliness increases; it will never
Pass into nothingness; but still will keep
A bower quiet for us, and a sleep
Full of sweet dreams, and health, and quite breathing.
John Keats
26 março 2006
A difícil pergunta
Como se recusa o amor?, perguntavas,
o sorriso brincando ao sol com as romãs.
Da maneira mais simples
É apenas o começo. Só depois dói,
e se lhe dá nome.
às vezes chamam-lhe paixão. Que pode
acontecer da maneira mais simples:
umas gotas de chuva no cabelo.
aproximas a mão, os dedos
desatam a arder inesperadamente,
recuas de medo. Aqueles cabelos,
as suas gotas de água são o começo,
apenas o começo. Antes
do fim terás de pegar no fogo
e fazeres do inverno
a mais ardente das estações.
Eugénio de Andrade in Os sulcos da sede
24 março 2006
Na Véspera
Na véspera de não partir nunca
Ao menos não há que arrumar malas
Nem que fazer planos em papel,
Com acompanhamento involuntário de esquecimentos,
Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca.
Grande sossego de já não haver sequer de que ter sossego!
Grande tranqüilidade a que nem sabe encolher ombros
Por isto tudo, ter pensado o tudo
É o ter chegado deliberadamente a nada.
Grande alegria de não ter precisão de ser alegre,
Como uma oportunidade virada do avesso.
Há quantas vezes vivo
A vida vegetativa do pensamento!
Todos os dias sine linea
Sossego, sim, sossego...
Grande tranqüilidade...
Que repouso, depois de tantas viagens, físicas e psíquicas!
Que prazer olhar para as malas fítando como para nada!
Dormita, alma, dormita!
Aproveita, dormita!
Dormita!
É pouco o tempo que tens! Dormita!
É a véspera de não partir nunca!
Alvaro de Campos
Vislumbre
A horas flébeis, outonais -
Por magoados fins de dia -
A minha Alma é água fria
Em ânforas de Oiro... entre cristais...
Mário de Sá-Carneiro
23 março 2006
As primeiras chuvas
As primeiras chuvas estavam tão perto
de ser música
que esquecemos que o verão acabara:
uma súbita alegria,
súbita e bárbara, subia e coroava
a terra de água,
e Deus, que tanto demorara,
ardia no coração da palavra.
22 março 2006
O eterno retornar a Sophia
Um dia
Um dia, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.
O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há-de voltar aos nosso membros lassos
A leve rapidez dos animais.
Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.
Sophia de Mello Breyner Andersen
Capitão Romance
Ornatos Violeta
Não vou procurar quem espero
se o que eu quero é navegar
pelo tamanho das ondas
conto não voltar
parto rumo à primavera
que em meu fundo se escondeu
esqueço tudo do que eu sou capaz
hoje o mar sou eu
esperam-me ondas que persistem
nunca param de bater
esperam-me homens que desistem
antes de morrer
por querer mais do que a vida
sou a sombra do que eu sou
e ao fim não toquei em nada
do que em mim tocou
Eu vi
mas não agarrei
Parto rumo à maravilha
rumo à dor que houver pra vir
se eu encontrar uma ilha
paro para sentir
e dar sentido à viagem
pra sentir que eu sou capaz
se o meu peito diz coragem
volto a partir em paz
Eu vi
mas não agarrei
21 março 2006
No dia da poesia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Fernando Pessoa
20 março 2006
Na dança da chuva
pintas na janela
contos do viver
e valsas os dias
contados na espera
da chegada
lá fora
renascem pétalas
esperas flores
e versos,
e esperas
o dia primeiro
da Primavera
Chama-se fé
isso de esperar
sem ver
e é a fé que te diz
que a Primavera
se chama vida
e a vida pode ser
também poema.
acredita-me, te digo
olha outra vez:
o céu, agora
azul de fé,
e um Sol raiado
pintaram um sorriso
no malmequer
lá embaixo
no canteiro do jardim
Acredita-me
Não esperes mais
limpa o vidro choroso
e a alma pesada
poderás então ouvir
(acredita em mim)
o trinado do rouxinol
e o renascer do poema
Sabes, talvez não seja
o primeiro dia da tua vida
mas é o dia primeiro da Primavera.
Mas que sei eu...
Mas que sei eu das folhas no Outono
ao vento vorazmente arremessadas
quando eu passo pelas madrugadas
tal como passaria qualquer dono?
Eu sei que é vão o vento e lento o sono
e acabam coisas mal principiadas
no ínvio precipício das geadas
que pressinto no meu fundo abandono
Nenhum súbito súbdito lamenta
a dor de assim passar que me atormenta
e me ergue no ar como outra fogueira qualquer.
Mas eu que sei destas manhãs?
as coisas vêm vão e são tão vãs
como este olhar que ignoro que me olha
Ruy Belo in "Todos os poemas"
Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.
Jorge de Sena
19 março 2006
A poesia dói dentro de mim, meu pai, grade de ferro, o útero, janela aberta, rua de comércio, canção de ninar, o silêncio, profano as coisas, a minha poesia não fala nada, tardes de aula, o mar e o brejo, pedaços , notas, explicação desnecessária.
Vera Lúcia de Oliveira
Amor sabe a ...
Amor sabe a
gotas de mel
a sorrisos de um bebé
às brincadeiras de uma criança
a um abraço contente
ao primeiro beijo adolescente
Amor sabe a ...
sonhos a ser vividos
gestos a ser feitos
sorrisos ainda não esboçados
beijos que hão-de ser dados.
Amor sabe a lágrimas
a choros de contentamento
alegrias que tu terás
por ilusões conquistadas
por glórias suadas
Amor sabe a vitórias
quando superares as derrotas
quando a ti te superares
Amor sabe a ti
meu filho
meu amor
gerado por um dia te pensar
gerado
nos sonhos
que em ti vou sonhar
nos gestos que em ti
irei viver
pelos sorrisos
que de ti poderei haver.
17 março 2006
Sê devastador e violento como a tempestade
ao abrir as gavetas, ao depor sobre a mesa
nenhuma razão que outros conheçam. alimenta-te
de mim e de ti, guarda as fotografias em paredes
brancas onde nenhuma ave se demore,
abre-me as feridas, as mais recentes e as antigas.
Sê brando e lento como as manhãs de dezembro
ao desfazerem-se em neve, esquece os recados,
os pequenos delitos escondidos em segredo.
os telhados abrigam-nos da maledicência, do azar,
daquilo que o tempo gasta em passar sobre nós.
leva-me assim, como um acidente entre os dedos.
Sê luminoso e intenso, ó meu amor, retrato escondido,
colecciona os declives, ensina-me essa geografia,
sê inocente e puro, mesmo que a noite interrompa a vida
e a nossa pele estremeça. deixa que bebamos
apenas se o prazer magoar onde nasce a sede,
fala-me de mim e de ti, se nos sentarmos mas dunas.
Francisco José Viegas
Pensar um nome
Para falar de uma ilha não há
um nome único. é preciso dizer casas
e telhados, um cemitério ao fundo
onde algures a água pode chegar
- essa água sempre girando à volta
dos olhos dessa mesma gente
abatendo o pó das mesmas ruas
e enxotando as mesmas crianças
das mesmíssimas soleiras de porta.
pensar um nome sem árvores
ou um bom punhado de velhos no jardim municipal
e oferecer o seu gosto salgado
ao paladar do turista exigente
farto da cor do mar sem o beijo do céu
e atento ao ritmo do xaramba
- a madeira saberia a alumínio
batido na ombreira
dos dias mornos
derretendo nos bois a canção dos vilões
curiosos dos limites das montanhas
e da maneira como morre o sol.
no interior das casas cheira a cal
e à pedra mole onde dormem os séculos.
o cimento e o andaime vão chegando
derradeiramente comandados pelos amantes da areia
e vão cobrindo de tijolo o espaço do calhau
- apetece rebentar na cabeça do silêncio
este amor pelas coisas antigas
a saudade das mãos cansadas
e de saborear a terra sem flores murchas.
a ilha é um nome verde
sonhador de uma manhã de versos
onde caiba um poema de planícies eternas.
José António Gonçalves
16 março 2006
Semântica do olhar
Como se as mãos para melhor se darem fossem senda
Abríamos nos olhos o lugar onde deixáramos a noite
Procura da qualidade do silêncio, da semântica da safira
Onde o sol era fissura e anomalia, uma mentira
Estranho, muito estranho, era o barulho do dia
E outras ignoradas estranhezas pendiam questionantes
Da força do destino, último sinal da existência
Nenhuma bioquímica emergia agora do namoro
Que houvesse, que há? assim se quer saber
Em vinte outonos de assombro pelas paradas pernas
À beira-abismo, doce tentação de continuar
Como se chamam as ninfas duêndicas do trabalho?
Um autocarro de lama nos estonteava a quietude
E a garimpa do ponto de contacto era um nada
Legítimo e acrescentado pela nossa presença em si
A realidade torna-se medonha, coruscante e estentórea
Passam, sem pausas, as imagens de outra dimensão
Mas logo a combustão dos contornos nos faz mistura
Mais não somos que um texto privado da particular unidade
Com que os amores encantados se fazem distintos
E o virtuosismo dos animais seráficos é só lembrança
Que um vinho confraternal recorda no imperfeito
Volvendo os suspiros ao lugar dos gritos imperecíveis
[...]
Alberto Miranda
Como um eco
Não tinhas
nome. Existias
como um eco
do silêncio. Eras
talvez
uma pergunta
do vento.
Albano Martins
15 março 2006
As palavras em transito
Resvalas neste sopro.
Sabes
que tens o olhar ferido
desde sempre, que o incêndio
das palavras em trânsito celebra
prescritas sílabas, ancorados
ritos, desprevenidos
equinócios.
Dantes,
havia um mar crispado
na fissura dos lábios. Hoje, apenas
algumas gotas de sal.
Albano Martins
A literatura também se converteu em silêncio, tornou-se apenas imanente, as palavras ficam cercadas, bloqueadas, e encontra-se sempre um meio de demonstrar às pessoas que elas significam tudo, e que, portanto, não significam nada, a palavra escrita é uma palavra morta e por isso eu quero a palavra dita, rente ao corpo, inseparada do corpo, língua, boca, braço, mão, gesto, movimento do eu e do outro, do eu para os outros e de novo destes para mim, a palavra que está no princípio do eu e do mundo e da vida e que é talvez, talvez, o amor
Teolinda Gersão in "O silêncio"
14 março 2006
Miradouros de ontem
Miradouro de Santa Catarina
Neste miradouro imaginário,
aqui miro a minha alma,
miro ânsias e as esperanças,
sonhos de uma tarde chuvosa,
amores perdidos que não tive,
desejos que não concretizei,
passados que não os meus.
Miro os saltimbancos da vida,
acrobacias de fitas imaginárias,
desenhos de cores que não existem,
equilíbrios instáveis de planos falhados.
Miro as músicas que guardo,
sinfonias de sentimentos,
poemas que outros escreveram...
Notas de uma pauta sem sentido.
Miro e espero, e espero,
e enquanto espero, quero!
Quero pairar sobre o vale da vida,
abrir as asas quebradas e voar...
quero sentir a brisa de outra tarde,
beijar o sol que se vai erguer,
Fénix de uma nova manhã,
noutra vida em que vou renascer.
Do passado restam as imagens,
viro outra folha, fecho o álbum,
esta noite vou sonhar
Um manto de ternura
Dizer-te, meu amigo,
que, à uma da manhã
e desta noite,
está lindo o nevoeiro
que um manto de sossego
assim inteiro
eu desejava dar-te
- e ter comigo.
Enviava-te um frasco,
se pudesse,
fechado em carta azul,
ou por fax de sol
(não fora o medo que o sol
o desfizesse)
Assim, mando daqui
esta espessura
de cheiro muito branco
e muito belo:
um manto de ternura
dobado num novelo,
que chegue
até aí.
Ana Luísa Amaral
13 março 2006
Poeta castrado, não!
Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!
Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.
Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:
Da fome já não se fala
- é tão vulgar que nos cansa -
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?
Do frio não reza a história
- a morte é branda e letal -
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?
E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
- Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
- Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!
Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
falso médico ladrão
prostituta proxeneta
espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!
Ary dos Santos
10 março 2006
a las olas verdugas
que conocen el verdadero nombre
de la muerte.
He llamado al viento,
le confié mi deseo de ser.
Pero un pájaro muerto
vuela hacia la desesperanza
en medio de la música
cuando brujas y flores
cortan la mano de la bruma.
Un pájaro muerto llamado azul.
No es la soledad con alas,
es el silencio de la prisionera,
es la mudez de pájaros y viento,
es el mundo enojado con mi risa
o los guardianes del infierno
rompiendo mis cartas.
He llamado, he llamado.
He llamado hacia nunca.
Alejandra Pizarnik
Não desenhamos uma imagem ilusória de nós próprios, mas inúmeras imagens, das quais muitas são apenas esboços, e que o espírito repele com embaraço, mesmo quando porventura haja colaborado, ele próprio, na sua formação. Qualquer livro, qualquer conversa podem fazê-las surgir; renovadas por cada paixão nova, mudam com os nossos mais recentes prazeres e os nossos últimos desgostos. São, contudo, bastante fortes para deixarem, em nós, lembranças secretas que crescem até formarem um dos elementos mais importantes da nossa vida: a consciência que temos de nós mesmos tão velada, tão oposta a toda a razão, que o próprio esforço do espírito para a captar a faz anular-se.
Nada de definido, nem que nos permita definir-nos; uma espécie de potência latente... como se houvesse apenas faltado a ocasião para cumprirmos no mundo real os gestos dos nossos sonhos, conservamos a impressão confusa, não de os ter realizado, mas de termos sido capazes de os realizar. Sentimos esta potência em nós como o atleta conhece a sua força sem pensar nela. Actores miseráveis que já não querem deixar os seus papéis gloriosos, somos, para nós mesmos, seres nos quais dorme, amalgamado, o cortejo ingénuo das possibilidades das nossas acções e dos nossos sonhos.
André Malraux, in 'A Tentação do Ocidente'
09 março 2006
O Universo não é uma ideia minha
O Universo não é uma ideia minha.
A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.
Alberto Caeiro
Cada lugar teu
Sei de cor cada lugar teu
atado em mim, a cada lugar meu
tento entender o rumo que a vida nos faz tomar
tento esquecer a mágoa
guardar só o que é bom de guardar
Pensa em mim protege o que eu te dou
Eu penso em ti e dou-te o que de melhor eu sou
sem ter defesas que me façam falhar
nesse lugar mais dentro
onde só chega quem não tem medo de naufragar
Fica em mim que hoje o tempo dói
como se arrancassem tudo o que já foi
e até o que virá e até o que eu sonhei
diz-me que vais guardar e abraçar
tudo o que eu te dei
Mesmo que a vida mude os nossos sentidos
e o mundo nos leve pra longe de nós
e que um dia o tempo pareça perdido
e tudo se desfaça num gesto só
Eu vou guardar cada lugar teu
ancorado em cada lugar meu
e hoje apenas isso me faz acreditar
que eu vou chegar contigo
onde só chega quem não tem medo de naufragar
Mafalda Veiga
08 março 2006
Citação:
07 março 2006
Agenda de concertos
Para quem ainda não conhece partilho aqui este link para uma agenda de eventos musicais que, embora não abrangendo todos os géneros de música, tem a vantagem de se esforçar por não se limitar a Lisboa.
Palavras trocadas
Palavras da Textura
num comentário em 25/02/2006:
pensas na vida cego para a cegueira
ingenuamente
aceitas tudo
e não aceitas nada
como eu
como outros
pensas muito na vida
pensas mais na vida
do que é desejável.
dir-te-iam as naturezas-mortas
como a mim
ou a outros
dir-te-iam
(que é por isso que deitas as histórias fora)
que esquecesses a histórias
dos teus pais
elas estão mortas
não têm
pais
também se estivesse morta
te censuraria
mas assim
não
assim apanho as histórias do teu chão
e conto-as para mim
como outros
e não me rio das tuas tristezas
e caligrafia torta
pelo menos eu não me rio
nem por fora nem por dentro
contento-me com os joelhos esfolados da tua infância
penso na tua vida como na minha
como outros
não largues todas as histórias
ao vento
isso é tudo despeito
das naturezas-mortas
E sobre as palavras dela,
as minhas palavras:
Não sou, como dizes
um pensador da vida
sou, antes, só por mim
o pensamento da vida
é ela que me pensa
Eu não me dou a esses luxos
de despeitar o tempo
em pensamentos que não fixo,
na vida que se foi;
Não é arrogância,
são apenas dores,
dores e o sofrer escritos
nas histórias lançadas
nos braços do vento
nesses dias de negritude.
Não queiras tais histórias
pejadas de laceração
cortar-te-ás também
no gume das palavras atiradas
estilhaçar-te-ás nos fragmentos
das lágrimas feridas
daquele azul-profundo
(que, bem sabes, odeio
tanto quanto amo)
Ri-te! Ri-te!
Não me importa porquê
Ri-te apenas
na facilidade dos risos puros
Ri-te! Não sabes que
o riso é alimento da alma?
Deixa-me , por favor,
respirar um pouco de ar
descançar esta alma viandante
sofrega de tempo e de viver
faminta de luz
e da loucura incontrolada
do riso simples
E não te preocupes
com as minhas histórias
órfãs no vento
filhas já velhas
do tempo
não são, na verdade,
vontade de despeito
pelos dias de antes;
terão sempre algo que nunca
deixarei de amar:
os sonhos falados
os projectos feitos de tudo
e de nada (não serão estes também sonhos?)
o reflexo do luar nas tardes incontidas
e o riso puro
pertença por direito natural
aos portadores
de almas grandiosas.
06 março 2006
Repto no vazio
Pois foi, afinal não houve nenhuma participação relativamente ao repto que lancei há alguns dias sobre o envio de textos que tenham sido marcas na vida de quem por aqui passasse e quisesse participar. Não faz mal, fica para outra vez.
Partidas
Não basta abrir a janela
Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.
Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as cousas humanas postas desta maneira.
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!
Entre o que vejo de um campo e o que vejo de outro campo
Passa um momento uma figura de homem.
Os seus passos vão com «ele» na mesma realidade,
Mas eu reparo para ele e para eles, e são duas cousas:
O «homem» vai andando com as suas ideias, falso e estrangeiro,
E os passos vão com o sistema antigo que faz pernas andar,
Olho-o de longe sem opinião nenhuma.
Que perfeito que é nele o que ele é – o seu corpo,
A sua verdadeira realidade que não tem desejos nem esperanças,
Mas músculos e a maneira certa e impessoal de os usar.
Alberto Caeiro
04 março 2006
Leaves of grass
Come, said my soul,
Such verses for my Body let us write, (for we are one,)
That should I after return,
Or, long, long hence, in other spheres,
There to some group of mates the chants resuming,
(Tallying Earth's soil, trees, winds, tumultuous waves,)
Ever with pleas'd smile I may keep on,
Ever and ever yet the verses owning--as, first, I here and now
Signing for Soul and Body, set to them my name
Walt Whitman
03 março 2006
A Noite Desce
A noite desce, o calor soçobra um pouco,
Estou lúcido como se nunca tivesse pensado
E tivesse raiz, ligação direta com a terra
Não esta espécie de ligação de sentido secundário observado à noite.
À noite quando me separo das cousas,
E m'aproximo das estrelas ou constelações distantes —
Erro: porque o distante não é o próximo,
E aproximá-lo é enganar-me.
Alberto Caeiro
Palavras que marcam
Repto
Deixo aqui um repto a quem quer que passe no blog nos próximos dias (até 5 de Março) e queira participar. E o repto é o seguinte: enviar para o endereço de e-mail do blog (está na coluna à esquerda, o link) um texto, prosa ou poesia, que vos tenha marcado ou com que se identifiquem (pode até ser da própria autoria). Os textos serão aqui posteriormente publicados e se pretenderem acompanhados de uma imagem é favor anexá-la ao e-mail.
At Last the Secret is Out
At last the secret is out, as it always must come in the end,
The delicious story is ripe to tell to the intimate friend;
Over the tea-cups and in the square the tongue has its desire;
Still waters run deep, my dear, there's never smoke without
fire.
Behind the corpse in the reservoir, behind the ghost on the
links,
Behind the lady who dances and the man who madly drinks,
Under .the look of fatigue, the attack of migraine and the sigh
There is always another story, there is more than meets the
eye.
For the clear voice suddenly singing, high up in the convent
wall,
The scent of the elder bushes, the sporting prints in the hall,
The croquet matches in summer, the handshake, the cough,
the kiss,
There is always a wicked secret, a private reason for this.
W.H. Auden
02 março 2006
Na minha graphonola:
Cat Power & Karen Elson
I love you (me either)
Fantástica esta versão, de "Je t'aime moi non plus" de Serge Gainsburg, por Cat Power e Karen Elson, e renomeada para "I love you (me either)", apesar de umas pequenas incongruências na tradução a partir do original para esta versão (é possível fazer download clicando sobre o link, o qual não está associado a este blog).
Em tempos, os meus gestos tiveram o rigor da abelha que rouba o pólen à flor. Com esses gestos quis construir um espaço para o silêncio. Uma morada onde fosse possível ignorar o mundo, ou esquecê- lo.
De vez em quando, aceito ainda o mistério das palavras que me cercam e não coincidem, em nada, com a realidade. Eu só quis celebrar a vida. Encontrar o esconderijo onde fosse possível um derradeiro acto de paixão. O esconderijo onde pudesse, de novo, tocar teu rosto e recusar a aridez da calúnia.
Mas a luz é o meu túmulo.
A pouco e pouco incendiaram-se os negros profundos, o círculo luminoso aprisionou-me, e as mãos gesticularam sem sentido. O interior das paisagens guardou a tua ausência. E numa última visão a madrugada irrompeu do mar adormecido.
As mãos abriram-se novamente, quando o dia começou a devorar a nudez do corpo.
Compovido, perdi a voz.
Não podia chamar-te, lembro-me, por isso desatei a escrever o teu nome nas paredes da cidade. Tempo perdido. Já não podias ouvir-me nem ler-me. Foi quando desejei, com ardor, este esconderijo.
Aqui, pelo menos, respiro ar condicionado, e um foco de luz simula a eternidade dos dias.
Hão há emoções, nem palavras ditas em voz alta. Não acontece nada, nem se ouve respiração alguma.
Quem me visita diz coisas fantásticas a meu respeito. Nunca confirmo nem desminto. Limito-me a ouvir e calo-me. Porque há coisas que devem correr com o tempo e, mais tarde ou mais cedo, nele se apagam.
É claro que também há coisas guardadas na minha memória de papel. Mas essas, já não tenho a certeza de que alguém as tenha dito ou eu as tenha, de facto, ouvido.
Por vezes ponho-me a sorrir, mas ninguém consegue ver que sorrio, porque o retrato que me esconde - como eu - está morto e desfocado.
Al Berto in "O Esconderijo do Homem Triste"
01 março 2006
retorno a Sophia:
As ondas quebraram uma a uma
Eu estava só com a areia e com a espuma
Do mar que cantava só para mim.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Blowin' in the Wind
How many roads must a man walk down
Before you call him a man?
Yes, 'n' how many seas must a white dove sail
Before she sleeps in the sand?
Yes, 'n' how many times must the cannon balls fly
Before they're forever banned?
The answer, my friend, is blowin' in the wind,
The answer is blowin' in the wind.
How many years can a mountain exist
Before it's washed to the sea?
Yes, 'n' how many years can some people exist
Before they're allowed to be free?
Yes, 'n' how many times can a man turn his head,
And pretend he just doesn't see?
The answer, my friend, is blowin' in the wind,
The answer is blowin' in the wind.
How many times must a man look up
Before he can see the sky?
Yes, 'n' how many ears must one man have
Before he can hear people cry?
Yes, 'n' how many deaths will it take till he knows
That too many people have died?
The answer, my friend, is blowin' in the wind,
The answer is blowin' in the wind.
Bob Dylan