Hoje tenho a noite por minha conta. Tinha que estudar para o exame de italiano mas a vontade é pouca. Na graphonola a Maria João Pires dedilha ora em laivos de loucura ora em suave trinar as teclas do piano, numa interpretação das Nocturnas de Chopin de que gosto muito. Após uma tarde com neve (algo que já não via em Lisboa, desde os meus onze anos) lá fora a chuva vai caindo um pouco intempestiva e aquecendo o ar gélido noite; gosto de a ver riscando os vidros, desenhando-se em riscos de profusa confusão e no entanto isso acalma-me. Vou sorvendo aos poucos o dry martini, no cinzeiro o cigarro esquecido consome-se lentamente em fios de fumo que aos poucos enevoam o ar... agora a música está realmente calma, a chuva parece ter abrandado igualmente acompanhando o som melódico do piano.
Surgem-me palavras, como me surgem muitas outras vezes, aponto as ideias principais no Moleskine, pode ser que dê alguma coisa, não sei mas pelo sim pelo não... tantas vezes que me surgem ideias e não tenho nada à mão para escrever ou então não é nem o lugar nem o momento mais oportuno... por vezes pergunto-me porque o faço; acho que é pura e simplesmente pelo prazer que me dá de ver o surgir as palavras, as imagens escritas que faço com elas; é para mim um processo bastante similar ao de revelar uma fotografia a preto e branco: ver aos poucos surgir a imagem no papel antes vazio de tudo, pleno de branco. Acho que no fim é sempre um nascer de algo de nós, não digo um filho mas de algo que nos acrescenta. Por vezes o parto é maravilhoso, as palavras correm em catadupa e encarreiram-se certinhas à espera da sua vez, outras vezes parece que tudo corre mal, quase que se pode dizer que é um nascimento a ferros, não que as ideias principais não estejam lá mas nada parece encadear-se e qualquer sequência parece dar num nado-morto ( e muitas vezes dá mesmo!).
Disse atrás que a escrita me dá gozo e vendo bem tenho que o aceitar como um facto quando à distância do tempo leio o que antes escrevi, embora algumas coisas que escreva não me dêem prazer nenhum quando as escrevo, especialmente quando o que provoca a sua gestação são sentimentos desagradáveis que me deixam triste, aborrecido ou mesmo muito em baixo (o fundo do poço é longínquo mas há alturas em que se chega mesmo lá, onde está a alma ferida de dor); aí, escrevo de raiva, descontrolado; não gosto de escrever sobre sentimentos assim mas não me consigo impedir. Sei que o principal sentimento que me faz escrever é a paixão, seja pelo que for, seja por quem for, e é a paixão a musa daquilo que mais gostei de escrever, todavia a dor é, a par da paixão, outra das principais origens da minha escrita; já escrevi coisas, nascidas no mais profundo da dor que nunca chegarão a ver os olhos de outra pessoa que não eu, não me atrevo, são cruas demais, frios, doridos, dolorosos, muito aproximado do sentimento que experimento quando olho "O grito" de Munch; estão guardados na negritude das palavras mortas-vivas que de quando em vez me atormentam porque um dia as criei e portanto filhas minhas.
Nem sempre escrevo o que realmente sinto: o texto criado pode ser uma ficção à volta de sentimento verdadeiro, de um momento, aproveitado para criar, porém sei que é algo que tenho de fazer crescer e evoluir pois ainda está muito verde; um dia penso escrever um livro de prosa ficcionada (já comecei mas resume-se realmente apenas a umas míseras linhas escritas de modo a não perder a ideia da história; acho que vai demorar muito tempo até avançar daí e provavelmente pode até nem sair desse ponto; o tempo o dirá). De poesia até escrevi, já, um livro todavia é muito pessoal e apenas existe um em versão de papel, edição de autor, prometida por mim a mim próprio, feita numa gráfica perdida na cidade, numa dessas ruelas quase anónimas, tal qual o livro, de modo a que assim continue, no desconhecido. De quando em vez folheio-o e perco-me nas minhas palavras e nos sentimentos por ali encontrados e, depois do livro fechado, perdidos. Também gosto de reler o que escrevo no blog, mas sempre à distância do tempo em que foi escrevinhado; só aí posso ajuizar e achar se gosto ou não do que escrevi.
Gosto de escrever na solidão de um banco do metropolitano, em hora de ponta, ou numa mesa de um café fumarento ou ainda num dos meus vários miradouros que tenho espalhados pela cidade; aí, sinto-me bem e por vezes a musa visita-me, mas é muito caprichosa e volátil, deste modo resta-me aproveitar os poucos momentos em que me dá o prazer da sua companhia; de qualquer modo resta sempre um ou dois livros na mochila para me ocupar, todos os outros momentos, no prazer da leitura.
Faz-se tarde e daqui a algumas horas tenho de ir trabalhar. Continua a chover; é pena, gostava que nevasse como à tarde mas não parece que assim seja mas que combinava melhor, com a música que continua a sair, mágica, dos dedos da Maria João, combinava.
Boa Noite.