< Miradouro da alma: janeiro 2006

31 janeiro 2006



Notturno


Su aguzze rocce roventi
si srotola
la notte.
Bacia la terra:
si dà
agli oleandri,
ai fichi d'India,
alla resina odorosa.

Ansima
la notte
nella muta calura estiva.

Solo una
falena
osa il confronto
con quel nero vagabondare
e si dimena
in cerca di luce.


Maria Rosaria Valentini




Travel Series #52



Igreja de Nossa Sra de Tyn





Travel Series #51



Igreja de Nossa Sra de Tyn



30 janeiro 2006



Il breviario


Entrammo nel paesaggio tristissimo,
una tristezza intessuta di colline,
alberi spogli, erbe basse,
biancospini in fiore.
A casa trovammo la nonna
novantenne, col figlio vecchio vicino,
tutti e due vicini al fuoco, il breviario
aperto alla pagina
di quel giorno e di quell'ora. Essi
non sapevano
di essere un frammento di eternità,
una scaglia lucente
intrisa di tempo e di destino.


Anna Ventura




Na minha graphonola:


A voz incomparável de Nina Simone no
fantástico "Wild is The Wind", de 1957




Love me love me love me
Say you do
Let me fly away
With you
For my love is like
The wind
And wild is the wind

Give me more
Than one caress
Satisfy this
Hungriness
Let the wind
Blow through your heart
For wild is the wind

You...
Touch me...
I hear the sound
Of mandolins
You...
Kiss me...
With your kiss
My life begins
You’re spring to me
All things
To me

Don’t you know you’re
Life itself
Like a leaf clings
To a tree
Oh my darling,
Cling to me
For we’re creatures
Of the wind
And wild is the wind
So wild is the wind

Wild is the wind
Wild is the wind






O corpo não espera. Não. Por nós
ou pelo amor. Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sede, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo...

Tem tanta pressa o corpo! E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou.



Jorge de Sena




Travel Series #50




Miradouros de Praga





Travel Series #49




Miradouros de Praga





Palavras apenas...

Hoje tenho a noite por minha conta. Tinha que estudar para o exame de italiano mas a vontade é pouca. Na graphonola a Maria João Pires dedilha ora em laivos de loucura ora em suave trinar as teclas do piano, numa interpretação das Nocturnas de Chopin de que gosto muito. Após uma tarde com neve (algo que já não via em Lisboa, desde os meus onze anos) lá fora a chuva vai caindo um pouco intempestiva e aquecendo o ar gélido noite; gosto de a ver riscando os vidros, desenhando-se em riscos de profusa confusão e no entanto isso acalma-me. Vou sorvendo aos poucos o dry martini, no cinzeiro o cigarro esquecido consome-se lentamente em fios de fumo que aos poucos enevoam o ar... agora a música está realmente calma, a chuva parece ter abrandado igualmente acompanhando o som melódico do piano.
Surgem-me palavras, como me surgem muitas outras vezes, aponto as ideias principais no Moleskine, pode ser que dê alguma coisa, não sei mas pelo sim pelo não... tantas vezes que me surgem ideias e não tenho nada à mão para escrever ou então não é nem o lugar nem o momento mais oportuno... por vezes pergunto-me porque o faço; acho que é pura e simplesmente pelo prazer que me dá de ver o surgir as palavras, as imagens escritas que faço com elas; é para mim um processo bastante similar ao de revelar uma fotografia a preto e branco: ver aos poucos surgir a imagem no papel antes vazio de tudo, pleno de branco. Acho que no fim é sempre um nascer de algo de nós, não digo um filho mas de algo que nos acrescenta. Por vezes o parto é maravilhoso, as palavras correm em catadupa e encarreiram-se certinhas à espera da sua vez, outras vezes parece que tudo corre mal, quase que se pode dizer que é um nascimento a ferros, não que as ideias principais não estejam lá mas nada parece encadear-se e qualquer sequência parece dar num nado-morto ( e muitas vezes dá mesmo!).
Disse atrás que a escrita me dá gozo e vendo bem tenho que o aceitar como um facto quando à distância do tempo leio o que antes escrevi, embora algumas coisas que escreva não me dêem prazer nenhum quando as escrevo, especialmente quando o que provoca a sua gestação são sentimentos desagradáveis que me deixam triste, aborrecido ou mesmo muito em baixo (o fundo do poço é longínquo mas há alturas em que se chega mesmo lá, onde está a alma ferida de dor); aí, escrevo de raiva, descontrolado; não gosto de escrever sobre sentimentos assim mas não me consigo impedir. Sei que o principal sentimento que me faz escrever é a paixão, seja pelo que for, seja por quem for, e é a paixão a musa daquilo que mais gostei de escrever, todavia a dor é, a par da paixão, outra das principais origens da minha escrita; já escrevi coisas, nascidas no mais profundo da dor que nunca chegarão a ver os olhos de outra pessoa que não eu, não me atrevo, são cruas demais, frios, doridos, dolorosos, muito aproximado do sentimento que experimento quando olho "O grito" de Munch; estão guardados na negritude das palavras mortas-vivas que de quando em vez me atormentam porque um dia as criei e portanto filhas minhas.
Nem sempre escrevo o que realmente sinto: o texto criado pode ser uma ficção à volta de sentimento verdadeiro, de um momento, aproveitado para criar, porém sei que é algo que tenho de fazer crescer e evoluir pois ainda está muito verde; um dia penso escrever um livro de prosa ficcionada (já comecei mas resume-se realmente apenas a umas míseras linhas escritas de modo a não perder a ideia da história; acho que vai demorar muito tempo até avançar daí e provavelmente pode até nem sair desse ponto; o tempo o dirá). De poesia até escrevi, já, um livro todavia é muito pessoal e apenas existe um em versão de papel, edição de autor, prometida por mim a mim próprio, feita numa gráfica perdida na cidade, numa dessas ruelas quase anónimas, tal qual o livro, de modo a que assim continue, no desconhecido. De quando em vez folheio-o e perco-me nas minhas palavras e nos sentimentos por ali encontrados e, depois do livro fechado, perdidos. Também gosto de reler o que escrevo no blog, mas sempre à distância do tempo em que foi escrevinhado; só aí posso ajuizar e achar se gosto ou não do que escrevi.
Gosto de escrever na solidão de um banco do metropolitano, em hora de ponta, ou numa mesa de um café fumarento ou ainda num dos meus vários miradouros que tenho espalhados pela cidade; aí, sinto-me bem e por vezes a musa visita-me, mas é muito caprichosa e volátil, deste modo resta-me aproveitar os poucos momentos em que me dá o prazer da sua companhia; de qualquer modo resta sempre um ou dois livros na mochila para me ocupar, todos os outros momentos, no prazer da leitura.

Faz-se tarde e daqui a algumas horas tenho de ir trabalhar. Continua a chover; é pena, gostava que nevasse como à tarde mas não parece que assim seja mas que combinava melhor, com a música que continua a sair, mágica, dos dedos da Maria João, combinava.
Boa Noite.


29 janeiro 2006



Hoje à tarde, a neve visitou Lisboa:






28 janeiro 2006



Silêncio de pedra



Porquê
o silêncio
por entre todas as palavras,
geradas de dor,
que podes cravar?
Não basta já a ausência
de que não reclamo,
a indiferença
nos dias que passam
ou o branco das noite vazias?
Ou será que se rege pela
crueza da pedra
o coração
outrora carne-luz?





Lisboa de outros tempos














27 janeiro 2006



Buon fine settimana








Na minha graphonola:



Sumi Jo
Prayers





De Que Me Rio


De que me rio eu?... Eu rio horas e horas
só para me esquecer, para me não sentir.
Eu rio a olhar o mar, as noites e as auroras;
passo a vida febril inquietantemente a rir.

Eu rio porque tenho medo, um terror vago
de me sentir a sós e de me interrogar;
rio pra não ouvir a voz do mar pressago
nem a das coisas mudas a chorar.

Rio pra não ouvir a voz que grita dentro de mim
o mistério de tudo o que me cerca
e a dor de não saber porque vivo assim.


António Patricio




Travel Series #48




Miradouros de Praga





Travel Series #47



Miradouros de Praga



26 janeiro 2006





É o poema de quem rasga os versos
porque os sentiu demais para os dizer
e os ouve nas ondas tão dispersos
como os sonhos que teve e viu morrer


António Patrício







De mim não falo mais :não quero nada.
De Deus não falo:não tem outro abrigo.
Não falarei também do mundo antigo,
pois nasce e morre em cada madrugada.

Nem de existir,que é a vida atraiçoada,
para sentir o tempo andar comigo;
nem de viver,que é liberdade errada,
e foge todo o Amor quando o persigo.

Por mais justiça ...-Ai quantos que eram novos
em vâo a esperaram porque nunca a viram!
E a eternidade...Ó transfusâo dos povos!

Não há verdade:O mundo não a esconde.
Tudo se vê: só se não sabe aonde.
Mortais ou imortais,todos mentiram.



Jorge de Sena




Travel Series #46



Praga
Ponte Charles





Travel Series #45



Praga
Ponte Charles



25 janeiro 2006




De recordações somos feitos e construídos e os lugares repositórios dos momentos que vivemos.
Sabemos assim ser, porque um dia edificamos mais um pouco daquilo que somos hoje e a autodestruição não faz parte do nosso ser, por isso não esquecemos; Só recordamos o que queremos...
O tempo é um mero factor relativo neste campo, o mais importante é de verdade o coração. Lirismo ou realidade?




Xutos e Pontapés - Doce murmúrio



Este que vocês ouvem
Esteve noutro lugar
Num sítio com um rio
E com muitas pontes
E todas longe do mar

Numa cidade
Com uma torre de ferro
Apontada ao luar
Na parte de trás
De um táxi perdeu-se
Abandonando o olhar

Nessa cidade
Numa outra noite
Já perdi do olhar
Ouviu um murmúrio
Um doce murmúrio
Que o fez acordar
Procurou por cima
Por baixo das pontes
Junto às portas ao fechar
Por onde passou
Já só encontrou
Uma saudade no ar

Este aqui que vocês ouvem
Não parou de perguntar
Se ouviam, se conheciam
Essa saudade do mar
Até que um grupo perdido
Se fez ouvir a cantar
As frases escondidas na memória
Nessa terra perto do mar
E mesmo quando soavam
Perdidas
Pareciam navegar

Nas ondas da Lua
Passavam a torre
E alcançavam o mar

Longe, tão longe
Longe do mar





Na minha graphonola:


The Kills - No Wow



I Hate The Way You Love



I, I, I can't get full
Please could you take my shakes
And would you hold them still
My words fell into the road
I saw it starting to happen
And I could not collect them
Before they were rolled
I could not collect them
Before they were rolled

You love, you love, you love
I hate the way you love
I hate the way you love

May I look into your glass
Because I need some reflection
Yeah, I know it won't last
And look it's over already over
And I did not have the heart
No I did not have the heart
I was loosing a button
Right from the start
I was loosing a button
I was coming apart
I was coming apart

You love, you love, you love
I hate the way you love
I hate the way you love

I know I've seen you before
You bored me then and now you just bore me some more
The clock gets locked, locked
Tick tick, tick-tick-tick, stop, stop!
And now I can't get full
Please could you take my shakes
My eyes feel spikey and small
And I can't get no picture on them at all
I can't get no picture on them at all

You love, you love, you love
I hate the way you love
I hate the way you love




Travel Series #44



Praga
Ponte Charles





Travel Series #43



Praga
Ponte Charles






A tinta preta que baila no papel
garante a eternidade do que empunha
o objecto dançarino e frio
(julgava eu um dia, ou simplesmente
fingia acreditar). A tinta
de qualquer cor e o papel
ou ferro onde se inscreva
passam voláteis como os dedos
cheios de intenções e como
o som do cuco três vezes repetido.

Ao silêncio seguinte ninguém sequer
responde, pois não sabe
ter havido um som, uma verdade, um antes.


Pedro Tamen


24 janeiro 2006



Memórias proibidas

Na sombra que o cansaço em mim demora
Perspassam só memórias que no verso
Se tornam alusão inconsistente

Mas não esqueci teu corpo: que não esquece
O que a memória não reteve nunca
Senão no vivo jeito de perder-se.


Luís Filipe Castro Mendes




Na minha graphonola:



The Jesus and Mary Chain
Psychocandy





Travel Series #42

Praga
Ponte Charles





há muito...



Há muito que deixei aquela praia
De grandes areias e grandes vagas
Mas sou eu ainda quem na brisa respira
E é por mim que espera cintilando a maré vasa


Sophia de Mello Breyner




Lisboa


Sim, assim falou... a cidade. Falou nos barcos que cavam sulcos no fluir do rio enquanto as Tágides lhes acenam, e em espuma tornam seus beijos; sentem-lhe a saudade, à cidade, do tempo em que, um dia princesas, a habitaram, um castelo em cada colina, sete ao todo. Foi nas suas artes que a magicaram cidade tão bela: ficou-lhe desses tempos idos o cantar do burburinho nas ondas do Tejo, prazeirento e sorridente de margens suaves, a paleta em cores que o sol pinta, cada dia, diferentes para que nenhuma outra urbe se lhe iguale e a poesia escrita nas gentes e nas pedras envelhecidas de histórias imensas, enquanto elas, as Tágides, embevecidas e saudosas no entardecer, a olham sua, cidade encantada das sete colinas.


23 janeiro 2006





Menino atirando pedras no Tejo







Porto


Paris


Praga




Nem sempre nesta ordem mas curiosa esta constatação de que me dei de as três cidades de que mais gosto começarem pela letra P (sem todavia deixar de gostar muito de outras, independentemente da letra porque são iniciadas); estas são todavia as minhas preferidas, tenho por elas um carinho muito especial.





Na minha graphonola:



As nocturnas de Chopin
por Maria João Pires






Travel Series #41





Praga
Monte Petrin
Mosteiro Strahov





Every Poem is an Epitaph


Desfiz meu corpo nas vivas marés
que os versos me traziam. Solidão
mil vezes retomada, sombra e pó,
palavras que nos doem mais de perto:
tudo desfez meu corpo e neste mar
um navegante encontra o seu deserto.


Luís F. Castro Mendes
Outras Canções




Travel Series #40




Praga
Monte Petrin
Mosteiro Strahov



22 janeiro 2006




As barcas gritam sobre as águas.
Eu respiro nas quilhas.
Atravesso o amor, respirando.
Como se o pensamento se rompesse com as estrelas
brutas. Encosto a cara às barcas doces.
Barcas maciças que gemem
com as pontas da água.
Encosto-me à dureza geral.
Ao sofrimento, à ideia geral das barcas.
Encosto a cara para atravessar o amor.
Faço tudo como quem desejasse cantar,
colocado nas palavras.
Respirando o casco das palavras.
Sua esteira embatente.
Com a cara para o ar nas gotas, nas estrelas.
Colocado no ranger doloroso dos remos,
Dos lemes das palavras.

É o chamado rio tejo
pelo amor dentro.
Vejo as pontes escorrendo.
Ouço os sinos da treva.
As cordas esticadas dos peixes que violinam a água.
É nas barcas que se atravessa o mundo.
As barcas batem, gritam.
Minha vida atravessa a cegueira,
chega a qualquer lado.
Barca alta, noite demente, amor ao meio.
Amor absolutamente ao meio.
Eu respiro nas quilhas. É forte
o cheiro do rio tejo.

Como se as barcas trespassassem campos,
a ruminação das flores cegas.
Se o tejo fosse urtigas.
Vacas dormindo.
Poças loucas.
Como se o tejo fosse o ar.
Como se o tejo fosse o interior da terra.
O interior da existência de um homem.
Tejo quente. Tejo muito frio.
Com a cara encostada à água amarela das flores.
Aos seixos na manhã.
Respirando. Atravessando o amor.
Com a cara no sofrimento.
Com vontade de cantar na ordem da noite.

Se me cai a mão, o pé.
A atenção na água.
Penso: o mundo é húmido. Não sei
o que quer dizer.
Atravessar o amor do tejo é qualquer coisa
como não saber nada.
É ser puro, existir ao cimo.
Atravessar tudo na noite despenhada.
Na despenhada palavra atravessar a estrutura da água,
da carne.
Como para cantar nas barcas.
Morrer, reviver nas barcas.

As pontes não são o rio.
As casas existem nas margens coalhadas.
Agora eu penso na solidão do amor.
Penso que é o ar, as vozes quase inexistentes no ar,
o que acompanha o amor.
Acompanha o amor algum peixe subtil.


Herberto Helder
Poemacto


21 janeiro 2006



A carta da paixão



Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os recessos negros
onde
se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se. O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, a lua
tece as ramas de sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta
da figura cravada
no espelho. Ou ainda a fenda
da fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-se a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços, a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mundança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tão feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol
lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.


in "Ou o Poema Contínuo"
Herberto Helder


20 janeiro 2006



Entardecer



Sexta-Feira ao entardecer, desertas as ruas da cidade, parece que o lusco-fusco absorveu tudo e todos e me envolve na solidão, na frieza dos edifícios. Dentro de momentos alguém apagará o dia e assaltar-me-á a noite; continuarei perdido, sem rumo, nesta cidade sem almas.





Na minha graphonola:



Pet Shop Boys - Please





Hoje, na RADAR, na graphonola da Sónia Tavares (The Gift)


Rent
Pet Shop Boys



(Again... Again... Again... Ooooh
(Again... Again... Again... Again... ...)

You dress me up, I'm your puppet
You buy me things, I love it
You bring me food, I need it
You give me love, I feed it

And look at the two of us in sympathy
With everything we see
I never want anything, it's easy
You buy whatever I need

But look at my hopes, look at my dreams
The currency we've spent
(Ooooh) I love you, oh, you pay my rent
(Ooooh) I love you, oh, you pay my rent

You phone me in the evening on hearsay
And bought me caviar
You took me to a restaurant off Broadway
To tell me who you are

We never-ever argue, we never calculate
The currency we've spent
(Ooooh) I love you, oh, you pay my rent
(Ooooh) I love you, you pay my rent
(Ooooh) I love you, oh, you pay my rent

I'm your puppet
I love it

And look at the two of us in sympathy
And sometimes ecstasy
Words mean so little, and money less
When you're lying next to me

But look at my hopes, look at my dreams
The currency we've spent
(Ooooh) I love you, oh, you pay my rent
(Ooooh) I love you, you pay my rent
(Ooooh) Ooh, I love you, you pay my rent

Look at my hopes, look at my dreams
The currency we've spent
(Ooooh) I love you, oh, you pay my rent
(Ooooh) I love you, you pay my rent

Look at my hopes, look at my dreams
The currency we've spent
(Ooooh) I love you, oh, you pay my rent
(Ooooh) I love you, you pay my rent
(Ooooh) I love you, you pay my rent (It's easy, it's so easy)
(Ooooh) You pay my rent (It's easy, it's so easy)
(Ooooh) You pay my rent (It's easy, it's so easy)
(Ooooh) I love you (It's easy, it's so easy)
(It's easy, it's so easy)
(It's easy, it's so easy)
(It's easy, it's so easy)
(It's easy, it's so easy)
(It's easy, it's so easy)
(It's easy, it's so easy)




Bom fim de semana !








Travel Series #39





Café junto ao Castelo de Praga








Sonho em Trieste


Eis-te de novo velho mar
pleno das minhas âncoras
Nem a vaga ausente
Nem o silêncio da luz
Dizem à gaivota
Sê amável
Com as minhas velas
Quantas rugas
Cordas oferecidas à errância
São precisas ao sol
Para ser surdo aos canhões
Aqui estão os meus mastros
Ciumentos dos descuidados pinheiros
Mais inquietos que as colinas
Por amar demasiado os sinos
Arde Sarajevo
Porque não aboliste as fronteiras
Nas veias do vento
Ulisses
Dos secretos amores
Ocultos ao horizonte
Eis-te esgotado mar
Passos pesados
Pelos cais
Nem o porto
Raptou os corsários
Nem a pedra
Salvou as neves
As recordações
Levadas pelas espumas
O sal fere as suas asas
A noite rouba-lhe os voos
Cume após cume
Tu temes as águias
As garras delas como balas
Nas névoas sonoras
Porque não imploraste as rochas
A desenvolta andorinha
Mar magoado
Para abraçar a água frívola
Nos braços da noite escarlate
E apagar todos os incêndios


Tahar Bekri


19 janeiro 2006



Na minha graphonola:



Tiga - Sexor





THE DOORS - Break On Through (To The Other Side)


You know the day destroys the night
Night divides the day
Tried to run
Tried to hide
Break on through to the other side
Break on through to the other side
Break on through to the other side, yeah

We chased our pleasures here
Dug our treasures there
But can you still recall
The time we cried
Break on through to the other side
Break on through to the other side

Yeah!
C'mon, yeah

Everybody loves my baby
Everybody loves my baby
She get(s high)
She get(s high)
She get(s high)
She get(s high)

I found an island in your arms
Country in your eyes
Arms that chain
Eyes that lie
Break on through to the other side
Break on through to the other side
Break on through, oww!
Oh, yeah!

Made the scene
Week to week
Day to day
Hour to hour
The gate is straight
Deep and wide
Break on through to the other side
Break on through to the other side
Break on through
Break on through
Break on through
Break on through
Yeah, yeah, yeah, yeah
Yeah, yeah, yeah, yeah, yeah




Travel Series #38





Praha Seesighting








A liberdade



"Meu filho coloca à minha frente sua caixa de tintas
E pede que eu lhe desenhe um pássaro...
Embebo o pincel na cor cinza
E desenho-lhe um quadrado com um cadeado... e barras
Meu filho me diz, e o espanto preenche seus olhos:
'Mas isso é uma prisão...
Meu pai, não sabes desenhar um pássaro?'
Digo-lhe: 'Meu filho... não me leves a mal
De fato esqueci a forma dos pássaros'
Meu filho coloca à minha frente sua caixa de lápis
E pede que eu lhe desenhe um mar...
Apanho um lápis
E lhe desenho um círculo negro...
Meu filho me diz:
'Mas isso é um círculo negro, meu pai...
Não sabes desenhar um mar?
Não sabes que o mar é azul?'
Digo-lhe: 'Meu filho,
Em meu tempo era perito em desenhar mares
Quanto a hoje... Levaram meu anzol
E o barco pesqueiro
Proibiram-me o diálogo com a cor azul
E de fisgar o peixe da liberdade'
Meu filho coloca à minha frente um caderno
E pede que eu lhe desenhe uma plantação de trigo
Apanho a caneta
E desenho-lhe um revólver
Meu filho debocha de minha ignorância nas artes plásticas
E diz surpreso:
'Não conheces a diferença entre o trigo e o revólver?'
Digo-lhe: 'Meu filho,
No passado conhecia a forma do trigo
Do pão e da rosa
Mas neste tempo metálico
Em que as árvores da floresta se uniram
Aos homens das milícias
E em que a rosa passou a vestir roupas camufladas
No tempo das espigas armadas
Dos pássaros armados
Da cultura armada
E da religião armada...
Não há pão que eu compre
Que não contenha um revólver
Não há flor que eu colha no campo
Que não aponte um revólver para minha face
Não há livro que eu compre
Que não venha a explodir entre meus dedos...'
Meu filho senta-se na borda da cama
E pede que eu lhe recite um poema
Uma lágrima minha cai no travesseiro
Ele a apanha perplexo e diz:
'Mas isso é uma lágrima, meu pai, não um poema'
Digo-lhe:
'Quando cresceres, meu filho,
E leres uma antologia de poesia árabe
Saberás que a palavra e a lágrima são irmãs
E que a poesia árabe
Nada mais é do que uma lágrima que emerge dentre os dedos'
Meu filho coloca à minha frente suas canetas e sua caixa de tintas/ E pede que eu lhe desenhe uma pátria
O pincel estremece em minha mão...
E caio chorando..."


Nizar Qabbani



18 janeiro 2006



Travel Series #37



Castelo de Praga
Capela





Um dia escrevi...



Tarde eterna


Na melancolia do entardecer
quando a prata toca as águas
mais um barco cruza o rio
Carrega, na sombra, silhuetas
inventadas num teatro de luz
leva vidas paradas, fugidias
leva o tempo, leva os dias
leva histórias desconhecidas
glórias esquecidas na noite
que as horas vão aproximando,
Seguem a bordo, sonho e ilusão
Desventura e desespero,
Mundos alheios que se cruzam,
Pensamentos vazios de sonho.
Neste entardecer anseio
sentir a doçura das ondas
a humidade da brisa
o beijo do sol que se põe,
e pergunto-me se haverá mesmo
alguém a bordo desse barco
e se alguém lá está, não pode
deixar de sentir esta brisa,
viver este pôr-do-sol, com eu.
E beijo a tarde,
enredado nos seus braços,
deixo-me transportar na ternura
dos últimos raios de sol
e na saudade me enlevo.





Blue Angel


It's the memory of your warmth
That keeps me alive
When I'm burning
And my world's closing in

Oh I'm on fire
Oh I'm on fire

I hold on to a wheel of burning fear

Oh I'm on fire
Oh I'm on fire

And then the sky is falling in
And I see your eyes

Hiding in the shadows
Hiding in the flames

Oh I'm on fire
Oh I'm on fire
I'm on fire...

It's the memory of your warmth
That keeps me alive
When I'm burning
And my world's closing in

Oh I'm on fire
Oh I'm on fire
I'm on fire

When I feel like I am dying
And soon I shall expire

I'm on fire
Oh I'm on fire
I'm on fire
Why is that
That I feel like I'm on fire

Antony and the Johnsons




Travel Series #36



Praga






Nunca consegui misturar-me nos outros corpos, estão demasiado vivos, doem-me quando lhes toco. Observo-os, uso-os, e no entanto mantêm-se tão distantes. Se calhar envelheci mais depressa ao tocá-los. A dor vai sulcando o rosto e comprimindo o coração, não sei... talvez seja apenas o receio da noite com os seus desmedidos poços de cinza. (...) No fundo estou-me nas tintas para isto tudo.

Al Berto - Lunário


17 janeiro 2006



Travel Series #35



Praga - Rio Vltava





Travel Series #34



Praga - Margens do Vltava





La feuille


De ta tige détachée,
Pauvre feuille desséchée,
Où vas-tu ? - Je n'en sais rien.
L'orage a brisé le chêne
Qui seul était mon soutien.
De son inconstante haleine
Le zéphyr ou l'aquilon
Depuis ce jour me promène
De la forêt à la plaine,
De la montagne au vallon.
Je vais où le vent me mène,
Sans me plaindre ou m'effrayer:
Je vais où va toute chose,
Où va la feuille de rose
Et la feuille de laurier.


Antoine Vincent Arnault




Na minha graphonola:



Johann Sebastian Bach
Variações Goldberg



16 janeiro 2006



Em prosa


Queixas-te de que já não te escrevo poemas, como o fazia noutros tempos. Sim, tens toda a razão: já não consigo criar nada porque a poesia que havia em ti morreu, vítima de doença prolongada. Desde que houve diagnóstico da doença procurei uma cura, pedi-te para lutares: não desistas! Prometeste que o farias e por vezes pareceu que assim era mas rapidamente te esquecias e a doença avançava, e tu sem lutar, enquanto a dor corroía a poesia, comia-a até ao mais profundo do ser; Um dia, nos meus braços, expirou a última sobra de vida que lhe restava e fiquei a olhá-la toda a noite: purulenta, negra, oca, sem paixão. MORTA! Fiquei, assim só, a chorá-la enquanto tu dormias, ao meu lado, como se nada se tivesse passado.
Desde esse dia, em que a poesia morreu, vesti de preto a alma, enviuvei e quis partir porque também eu morri sem poesia. Fiz as malas e já na porta, entre lágrimas, impediste-me de saír, prometeste mais uma vez que seria desta.
- Morreu, já te deste conta? Foi-se!
- Prometo ressuscitá-la, é definitivo. Vou lutar por ela, reviverá! -disseste.
Confesso que já não acreditei, mas acedi. Até hoje nunca te disse porque fiquei e nunca o saberás, mas não foi pela poesia que em vão prometeste ressuscitar e aos poucos, de novo, esqueceste. Na verdade não percebo como apenas o vulgar correr dos dias te basta para viver, sem o sabor da poesia, sem sentir a paixão das palavras, sem a capacidade de viver os sonhos e sonhar a loucura, mesmo que em palavras apenas.
Sim, sei que fiquei e disso não te culpo porque a decisão foi minha, fiquei porque haveria sempre de morrer um dia; Fiquei porque tive de ficar mas não me peças, por favor, que te escreva mais poemas; porque a paixão já se esvaiu, porque um dia assassinaste a poesia.




Travel Series #33



Praga - Ponte Charles





Travel Series #32 -Praha project



Praga - Ponte Charles



13 janeiro 2006



Bom fim de semana







Re:



Como poderia
alguma vez ter partido
Se aqui nunca estive.
Fui talvez uma ideia
um pensamento fátuo,
uma criação tua
em noites opacas de cristal
noites alucinadas
absolutas negras noites sem sonhos.
Nunca serei uma memória
recuso-me a tal,
renego-me a ficar em baús,
caixas ou o que for,
fechado na espera de um capricho
num egoísmo que abra o tempo
e me olhe,
como se fora selo de colecção,
misturado por entre outras memórias
de que não faço parte,
desconhecido.
Serei sim o vento
ou a fúria da tempestade
o raio
ou furacão,
talvez a brisa
talvez uma lágrima de azul
perdido na tristeza de um olhar.
Repousarei, então, da eterna viagem,
do dia que em ti parti,
quedarei em sal doce
nos lábios entreabertos
rasgados num sorriso de tempo
de uma imagem que ficou.






Travel Series #31



Florença - Igreja de Sta Cruz





Travel Series #30



Florença - Catedral





Excerto:


Não sei o que me aconteceu para ficar tão triste.
Lembro-me de ter percorrido meio mundo à procura de imagens. Tinham- me dito: é no movimento incessante de quem viaja que encontrarás a imobilidade que desejas.
Mas eu não sabia para onde ir. Deambulei anos a fio, e nunca encontrei as imagens que queria. Gastei as parcas forças que tinha neste trabalho, até que um dia me perdi junto ao mar.
Resolvi construir, ali mesmo, uma casa.
Tencionava não sair mais daquele lugar onde me perdera. Imobilizar- me, viver e envelhecer dentro de quatro paredes nuas erguidas pelas minhas mãos. Morrer frente ao mar, sozinho, como num romance que lera havia anos. Esperar que a casa se esboroasse e me servisse, por fim, de túmulo.
Assim não aconteceu. Algum tempo depois, a casa transformou-se subitamente em prisão. E talvez tenha sido isso que me pôs, assim, triste para sempre. Custava-me a crer que aquilo que eu próprio construíra acabasse de me atraiçoar.
Assustei-me e fugi nessa mesma noite. Ignoro o que se passou com a casa. Não sei se ainda existe... o que sei é que a meio daquela fuga deseperada ocorreu-me o que me levaria, enfim, a encontrar o esconderijo para a minha imobilidade.

[...]
E aqui estou, diante de quem me visita e olha. Apesar de não ter deixado de ser um homem triste, adquiri a vantagem de estar sentado, e de já não precisar de fugir ou desejar seja o que for.
Mas o pior momento do dia é aquele em que nos separamos. Não consigo dormir. Fico noite fora com a minha solidão - e quem esteve a ver-me parte com o susto de continuar a existir.
Nenhum de nós é capaz de murmurar: fica comigo e toca-me. E a noite cai, de certeza, mais escura para quem parte.
Eu sou apenas a imagem do que fui. Não sinto nada.


O Esconderijo do Homem Triste
Al Berto


12 janeiro 2006



Travel Series #29



Florença
Baptistério





Uma cidade que me ensinaram a gostar...



De vez em quando, Lisboa tem crepúsculos misteriosos. Uma luminosidade fulva envolve a cidade, veste-a, e ela desata a arder. Depois, a fina bruma esconde o Tejo, a ponte, os fumos negros da outra margem. A cidade desaparece, aos poucos, sob um lençol de branca humidade. [...] A noite caía, como hoje, lenta e húmida. Lembro-me de tudo como se fosse neste preciso instante...

Al Berto
Os Jardins do Paraíso



11 janeiro 2006



Na minha graphonola:




Nude & Rude: The Best of
Iggy Pop





Introspecção


Quantas vezes, no escuro,
Procuras o conforto de Morfeu
Mas o sono não te acompanha
E a noite avança e avança
E lanças o olhar nas trevas
Procurando o bálsamo
Que te cure as tormentas
E uma lágrima corre
E queima e fere-te a face
Num rio amargo
Numa dor lancinante
Afogando-te a alma.
Durante tanto tempo
Enganaste o dia e
Enganaste os sonhos
Enganaste o mundo
Enganaste-te a ti...
Quantas vezes, na obscuridade,
Te encontraste
Face a face, só contigo
E te perguntaste
O porquê deste existir
O porquê de os sonhos se perderem
O porquê das ilusões que se esfumaram
E das desilusões que não querias
O porquê de amar e
O porquê de sofrer
E no fim...
No fim, apenas porquês restam
Ocos, devolutos,
Simplesmente e só: porquês.
Quantas vezes, no escuro,
Te repetiste mil vezes,
Na convicção que mil vezes
Seriam suficientes
Para tornar o logro real
E a ilusão verdade
E o mundo teu
E a dor fosse Amor.

Mil vezes foram
Mas de nada servem:
A mentira nunca será verdade
Nem o mundo alguma vez só teu
Já nem o teu todo é teu
E da dor, somente sabes,
Que nasce do Amor.
Quantas vezes e vezes
Te perdeste
Sem saber
Como te encontrares
E te envolveu a bruma,
Abraçaste a noite
E então caminhaste sobre as águas
E apetecia-te o azul fundo,
Bem fundo, sem volta.
Agora já nada vês,
Não é importante,
Não que saibas, de verdade,
O que importa
Olhas e restas assim
Num nada imenso
De escuridão
Assim
Sem mais
Sem mais nada






TU.





Travel Series #28



Florença - Baptistério - Cúpula





Excerto de um poema que gosto muito:



[...]
How happy is the blameless vestal's lot!
The world forgetting, by the world forgot.
Eternal sunshine of the spotless mind!
Each pray'r accepted, and each wish resign'd;
Labour and rest, that equal periods keep;
"Obedient slumbers that can wake and weep;"
Desires compos'd, affections ever ev'n,
Tears that delight, and sighs that waft to Heav'n.
Grace shines around her with serenest beams,
And whisp'ring angels prompt her golden dreams.
For her th' unfading rose of Eden blooms,
And wings of seraphs shed divine perfumes,
For her the Spouse prepares the bridal ring,
For her white virgins hymeneals sing,
To sounds of heav'nly harps she dies away,
And melts in visions of eternal day.



Eloisa to Abelard by Alexander Pope



10 janeiro 2006



Na minha graphonola:



The Veils
Runaway Found






Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso - em suma, é a nós mesmos - que amamos.

Isto é verdade em toda a escala do amor. No amor sexual buscamos um prazer nosso por intermédio de um corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma ideia nossa. O onanista é objecto, mas, em exacta verdade, o onanista é a perfeita expressão lógica do amoroso. É o único que não disfarça nem se engana.

As relações entre uma alma e outra, através de coisas tão incertas e divergentes como as palavras comuns e os gestos que se empreendem, são matéria de estranha complexidade. No próprio acto em que nos conhecemos, nos desconhecemos. Dizem os dois «amo-te» ou pensam-no e sentem-no por troca, e cada um quer dizer uma ideia diferente, uma vida diferente, até, porventura, uma cor ou um aroma diferente, na soma abstracta de impressões que constitui a actividade da alma.

É de compreender que sobretudo nos cansamos. Viver é não pensar.



Bernardo Soares - Livro do Desassossego


E não pensar será viver?




Travel Series #27



Florença
Piazza della signora - Fonte de Neptuno



09 janeiro 2006



memórias



e o tempo carrega
em lágrimas de azul perdido
as memórias que se foram...
terão realmente partido?
ou visitar-nos-ão em sonhos
em réstias lascivas incontidas de prazer,
no clarão da noite,
restando na intemporalidade da alma
pelos séculos dos séculos?





Na minha graphonola:



Seka - turn out the lights





rEpOsIçÃo



[...]
o vómito da luz ergue-se
das palavras ditas em surdina
a seguir vem o sono
e o miraculado entra no voo dos cisnes
o dia cansa-se
na brutalidade com que a voz se atira contra as paredes
abrindo fendas
em toda a extensão das veias e dos tendões

quando desperta com o crepúsculo
o miraculado olha-nos fixamente e sorri
dá-nos uma rosa em forma de estilete - fechamos os olhos
sabendo que este é o maior engano
da eternidade


Al-Berto
Horto de Incêndio





Crespúsculo



É quando um espelho, no quarto,
se enfastia;
Quando a noite se destaca
da cortina;
Quando a carne tem o travo
da saliva,
e a saliva sabe a carne
dissolvida;
Quando a força de vontade
ressuscita;
Quando o pé sobre o sapato
se equilibra...
E quando às sete da tarde
morre o dia
- que dentro de nossas almas
se ilumina,
com luz lívida, a palavra
despedida.


David Mourão-Ferreira



06 janeiro 2006



bon week-end








Na minha graphonola:



AIR - 10000Hz Legend







Nós temos cinco sentidos:
são dois pares e meio de asas.

- Como quereis o equilíbrio?


David Mourão-Ferreira





Travel Series #26



florença - igreja de sta maria novella