< Miradouro da alma: Em prosa

16 janeiro 2006



Em prosa


Queixas-te de que já não te escrevo poemas, como o fazia noutros tempos. Sim, tens toda a razão: já não consigo criar nada porque a poesia que havia em ti morreu, vítima de doença prolongada. Desde que houve diagnóstico da doença procurei uma cura, pedi-te para lutares: não desistas! Prometeste que o farias e por vezes pareceu que assim era mas rapidamente te esquecias e a doença avançava, e tu sem lutar, enquanto a dor corroía a poesia, comia-a até ao mais profundo do ser; Um dia, nos meus braços, expirou a última sobra de vida que lhe restava e fiquei a olhá-la toda a noite: purulenta, negra, oca, sem paixão. MORTA! Fiquei, assim só, a chorá-la enquanto tu dormias, ao meu lado, como se nada se tivesse passado.
Desde esse dia, em que a poesia morreu, vesti de preto a alma, enviuvei e quis partir porque também eu morri sem poesia. Fiz as malas e já na porta, entre lágrimas, impediste-me de saír, prometeste mais uma vez que seria desta.
- Morreu, já te deste conta? Foi-se!
- Prometo ressuscitá-la, é definitivo. Vou lutar por ela, reviverá! -disseste.
Confesso que já não acreditei, mas acedi. Até hoje nunca te disse porque fiquei e nunca o saberás, mas não foi pela poesia que em vão prometeste ressuscitar e aos poucos, de novo, esqueceste. Na verdade não percebo como apenas o vulgar correr dos dias te basta para viver, sem o sabor da poesia, sem sentir a paixão das palavras, sem a capacidade de viver os sonhos e sonhar a loucura, mesmo que em palavras apenas.
Sim, sei que fiquei e disso não te culpo porque a decisão foi minha, fiquei porque haveria sempre de morrer um dia; Fiquei porque tive de ficar mas não me peças, por favor, que te escreva mais poemas; porque a paixão já se esvaiu, porque um dia assassinaste a poesia.

1 Comentários:

Blogger textura escreveu...

Há dias em que me sinto vazia como um pacote de bolachas devastado durante a noite. Cheia de nada para dizer. Sinto pudor de mim própria. E procuro Álvaro de Campos. Gosto do que ele tem para me dizer nesses dias.

Acho que percebo quando falas de esforco e de escrita. Acontece-me o mesmo. Um exercicio masoquista na procura do prazer através da dor. Nada me nasce espontaneamente.
Certo dia, em conversa com um amigo, apelidei a inquietude que impele a criacao de angústia. Ele nao gostou. Mas para mim é isso. Uma angústia maior.


"Credo"

"The infinite
tiny things. For once merely to breathe
in the light of the infinite

tiny things
that surround us. Or nothing
can escape

the lure of this darkness, the eye
will discover that we are
only what has made us less
than we are. To say nothing. To say: our very lives

depend on it."

Um poema de Auster. Descobri ser um hábito que já nao tem, a poesia. Como alguém que foste hoje na tua prosa por instantes.
Somos sempre um pouco viloes os tristes os sujos os sem casa ou pior aqueles que matam a poesia e que a deixam morrer deixando o assassino escapar impunemente.
Gostei deste poema.

Aqui fica.

desculpa a falta de acentuacao. olha outra vez ehh ehh.

É um diálogo semantico. É isso que se passa.

16 janeiro, 2006 13:56  

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